sábado, 8 de janeiro de 2011

só por isso

hoje eu resolvi falar com você, meu caro felipe. o rio de janeiro já não é mais o mesmo e aquele apartamento velho e sujo que você dividia com sua irmã já não existe mais. o jeito agora é girar o globo, apontar o dedo indicador para ele, e pará-lo com a escolha de uma viagem casual, como se fossemos hollywoodianos, assim, bem pouco documentais, bem pouco poéticos. já não importa mais para onde vamos (nós chegamos sempre aonde não sabemos). as impressões se confundem: buenos aires que é sevilla que é recife que é são paulo que é los angeles que é florianópolis que não é nada. meu amigo, os nossos passos são guiados pela bússula musical de uma gaita nervosa, a tua de lá a minha daqui. e os passos também se confundem (ou se misturam, quem sabe?). eu poderia dizer: “vamos transar mais um passeio por londres?”, mas seria por demais anacrônico. o mundo agora é outro, o mundo agora não transa mais nada. a gente faz e desfaz um rodopio sem lugar, sem eixo: em branco. e o branco aqui é outro: não queremos o preto no branco. queremos o branco manchado pela poeira da memória que responde a todas as nossas questões: da bebedeira safada de nosso velho predileto aos rastros sem-dono do nosso jovem mais covarde. tudo é poeira, tudo é nada, felipe. por isso hoje eu resolvi falar com você.



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renata gomes

terça-feira, 9 de novembro de 2010

bs.as.

I - ezeiza

menos marcado pela vista quadriculada do avião que
descia
e aterrisar é sempre mais violento

entre as luzes que começavam a se apagar
na hora mais fria do dia ou da noite
o indeciso do luscofusco da madrugada

uma cadeira de rodas me passa sobre os pés com um
"permiso" quase sussurrado.
dor que não fica boazinha, que redunda na batida de
malas
dor pra lembrar que a gente tá vivo
e nunca consegue ser mais nacional do que quando
exilado
e quando "no están listos"

dor de pé esquerdo, cheirava a mau agouro.
presságios por vezes se enganam.
se é que existem.

dias depois, nesse mesmo lugar de ninguém,
o pânico dos pacotes de miçangas
entre as toalhas quase que extraviadas do saco roxo
que fiz chegar ao destino
um tanto maria
um outro tanto transitória

II - recoleta

errando em dia de censo - quando todo mundo para para
ser contado

o cemitério era a morte feita turismo
perambulação entre monumentos bizarros de mármore

não sabia se procurava evita ou madonna
e nem sei qual delas encontrei no frontão preto e
sisudo
da família duarte
entre as plaquinhas e as flores que
seis da tarde enquanto o sino tocava
já se iam marchitando

anjos de asas pontiagudas
luciferinos
em queda

outros tantos rococós
e os gatos passeando de entremeio

duas velhinhas que não sabiam a saída
perguntavam-se por onde - e por quanto tempo -
sairiam aquele ambiente

era cercano o café onde nos sentamos até
por volta das quatro da manhã
e na santa fé fomos ter
abraçados, pressão nos ossos,
vontades confessas,
com a senhora dona do cachorro egípcio
que dizia ter dois mil anos
por detrás dos óculos de tartaruga
de mulher que morou nas canárias com seu oficial
e a quem podia faltar cabelo
mas não faltava língua
nem namorado

o subte me viu chegando várias vezes
em estados diferentes
a rua não me viu
os chinos viram os pesos
e as garrafas

havia ainda suspenso, longe até do alcance
dos discos voadores
o salão egípcio
em que não estava o cão
(o nome do cão era quéops)
mas só se podia viver de perfil

acho que nessa calle
comecei a aprender o sentido da palavra
extrañar
as unhas pintadas, os anéis grandes,
o nariz aquilino, o sorriso fácil
até a dificuldade de entender
e a vontade de que muita coisa não seja entendida
volver, sentir
"lá nós temos um nome pra isso"
era o que podia dizer

III - puerto madero

o que aponta pra cima não busca deus
sequer sei se há deus nessa cidade
se a catedral é ou um baile
ou uma grécia onde anacrônico
san martín repousa

o que rasga o céu com um dedo em riste
ou com um falo triste
é uma ponte-mulher

nem seguindo a vaca encontramos o casal
sentamos querendo a grama
ou a água

senti falta da prostituta que
todo cais de porto tem
ou ela era eu e eu não sabia
porque o dia era ensolarado e me faltava
a névoa

esse porto também não tinha navalha
nem cheirava a peixe

IV - san telmo

mi tío me aguarda na esquina
um dia antes da feira em que me afoguei
(sem pular do cais)
em telefones, sifonazos, talheres enferrujados

(interrupção: um pombo acaba de sujar o paletó)

fotos de família, medalhas de guerra, livros,
caixinhas de cigarros, porta-copos,
uma lona vermelha, a lona da frente acenando
reais, dólares, pesos, o que chegar primeiro
manteigueiras, pratos, taças, pentes,
uma boneca velha de face macabra,
pencas de chaves para prender pescoços

um velho canastrão diz que gardel vive
ele saltita para frente e para trás ao lado
uma égua anã grávida
e uma estátua de gesso animada
fora do sinal de trânsito

enquanto sentamos e ouvimos um samba
(nunca se é tanto quanto fora)
algumas cervejas más barrio

V - palermo

não é tua filial de hollywood que extraño
nem o café de cujo teto choveu pizza
nem a calefação ou as taças de vinho
ou os guardanapos no colo
nem as promessas do peronismo

um salão esfumeado e anéis batendo sobre a mesa
mais cadeiras brancas do que pista
era baile de máscaras e eu só usava pó de arroz
e buscava um par de unhas vermelhas
e a turba que se batia no rock'n'roll

escadas com apertos inconfessos
era outra sala esfumeada
mas não havia importância de ver
em quartas dimensões

VI - limites

atirando o jornal ao meu rosto,
o bigodudo homem de repartição me punha
entre ignorante, desatento e indecoroso
me cobrava que soubesse do defunto
que diziam até não morto
foragido, exilado noutra parte
enquanto três filas de corpos
de catadores a senhoras de sobretudo
e quarenta e outras tantas variantes de bandeiras e
faixas
perfilavam a rua estagnada incenseada

era ali que outros tantos voaram pra morte
mas se a memória tinha peso de cadeia
se massera pudera sorrir com semblante de gardel
se os porões ainda rangiam dentes
se surdo ainda rebatia um tambor de água
um grito de estupro ou um roubo de bebê
enquanto o sangue lhe escorria pelos dentes
na escola de engenharia da armada

o espaço tinha tintas e palhaços
jardinagem, café, e uma senhora
que se recusava a trocar moedas
para que retrocedêssemos
era ali entre janelas antigas
que tentávamos nos entender
rasgando cortinas de papelão
ou vendo bocas se mexendo, se mexendo

o abridor de garrafas me disse
no se acuerda que en boedo
arreglaba cancha’e bochas,
ni de aquella vieja chocha,
por él, que mil veces lo ayudó.
e duas estatuetas, uma metálica,
outra de louça, dançaram

VII - paseandose

na primeira tentativa de limite
empurrados de volta ao torvelinho turístico
flores de florida
(fossem plásticas, seriam de flórida)
diez pesitos y un besito, baratinho
(com o t mais tepe que de costume)
cartazes de convite, couros
e algumas lojas com tanto bibelô
que já me faltava saber onde começava um
ou terminava outro
ou se entre eles havia alguma separação ou diferença

(cortázar fumou comigo e a senhora do cão;
borges fugia aos dedos entre senderos
onde até sylvia plath surgiu)

voltas ao obelisco, várias, e não em perfil
era forte a luz que atravessava a rua larga
e o sujeito nulo naquela amplitude
comprou uma foto do casamento de evita
e um diagrama de como destrinchar aquelas carnes
não saiu ninguém porta afora para gritar asesino

outro dia, as cercas ainda acusavam flores velhas
respirava o ar carregado e um tanto seco
e a parte baixa do trem pichada
me fazia pensar quem ainda caminhava as linhas

VIII - tigre

outra viagem começava do retiro
longa, solavancada e com tentativas de vendas
to the other shores, mas de novo sem embarcar
(era como se não se permitisse navegar)
(andava apenas margeando)

quando voltava de entre as casas e as garças
esbarrou na mãe que clamava que ao menos por um minuto
os carros parassem
(as bandeiras já não mais em meio-pau)

o rio lhe riu algumas vezes
mas o riso era melancólico
cravejado de peixes que não se sabia
buscavam ar ou comida
se o comeriam se porventura caísse
nem suja a água podia não se fazer atrativa
quando desceu as escadinhas do cais

tampouco era mesopotâmia

IX - agüero

ali suspenso entre discos voadores
tinha a porta do salão egípcio mas não entrou
apenas assinalou como se poderia atravessá-la
enquanto dançava ou cantarolava
wave
e o vizinho, de cima, respondeu na mesma nota
para ali levou um pires e uma caneca

cruzaron por mi mente recuerdos en bandadas
cariños, alegrías
todo perderlo ví

dormiam mais ou menos juntos
havia o sujeito que sempre tardava
ou amanhecia e dormia caminhando-se
contrário à santa fé estava las heras
enquanto se prendia ou no pano preto
ou nos azuis
ou não sabia se a vizinha dera a facada
ou quem chegaria primeiro

X - tango

sarmiento y medrano
o galpão onde entramos era
uma bricolage

o espectro de gardel avizinhado da coca-cola
o homem que roubou meu copo
cadeiras, mesas, sapatos de salto
um grande sofá vermelho
emendas no assoalho
senhores mais ou menos carecas sem fato
e os encontros não eram só de pernas

sons do presente amenizavam o peso
de algum tipo de tradição
os corpos trocaram de movimento
encharcando-se não de vinho
mas de cerveja
(o calor também não podia deixar de aumentar
e havia uma mesa de xadrez ao canto)

o piso quadriculado do salón fumador
de onde se via a mulher de menos de metro e meio
violão abaixo do braço
que veio ao foco da luz
restaurar em voz rouca
o baile
que faz espaço no tempo em que acontece
que só tem tempo enquanto algo se move

e tudo terminava quase da maneira como começou
exceto porque havia dois homens
ou duas mulheres dançando
que depois rumariam vinho branco pelas calçadas

eu não sei dançar

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george frança

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

do fim e do início, do dez e do onze

se cheguei aqui, não sei por onde comecei. o centro da cidade não me leva a lugar nenhum: passar por ele é mero acaso. é como que topando com joaninhas. pode ser sorte, pode ser azar. à margem, à margem, à margem? talvez a margem do la plata, e só. as orillas do cortázar não andaram comigo, tão pouco vieram pra casa. de lá, observei as meninas de 35 passando, passando, passando como o vento. não quis muita conversa, hesitei, olhei para os lados e, quando ninguém mais me fitava, virei para elas e gritei “me mandem um postal falso dessa cidade arrependida”. o depois ninguém quer saber. os olhares estão comigo e camuflados entre letras tortas de uma mente fugidia. e parece que só olhares: buenos aires não tem voz, não tem música, não tem ruído. e eu grito, eu grito, eu grito. uma cidade quase destruída por sua loucura. não é américa, não é milão: é orilla, orilla, orilla. buenos aires, mi terra querida, gardel te predestinou um futuro trágico, melancólico e doído. e troco tudo isso por um miles davis tranquilizante, mas cheio de sobressaltos. so what? minha paradinha foi, sim, estratégica. queria tanto falar. mas o jazz sem voz é sempre mais agradável. jazz, vinho e fumaça: a combinação ainda não está perfeita. procuro o doce e o amargo da cerveja. troco um, pelo outro e vou trocando de acordo com a música que toca. caminho pelas ruas transladadas da cidade não-proviciana que me oferece bugigangas, camelôs e flores, muitas flores. visto as quinquilharias e penduricalhos como se eu fosse um museu de tudo e carrego a cidade aconchegada em bolsos vazios e olhares cheios. procuro clarissa pelas ruas arborizadas e a vejo no calçadão da florida, claro, calma e feliz. buenos aires é isso, um pequeno buquê de flores barato: de vida curta sem ser pequena.


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renata gomes

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

poema sanfonado

(produto de um experimento surrealista, em papel que ia se dobrando e acabou escrito dos dois lados e em dois sentidos)

saltando como coelhos no campo

porque, na verdade, você fez com que as coisas se encaminhassem dessa forma

queria ouvir, na verdade, mas não tenho acesso
eu digo eu e dobro o rosto.

é só nosso!
três pequenas manchas voando na areia
perco as chaves, bebo, não vomito:
c'est maintenant decide.

um jogo de quebras no piso sujo e quadriculado
os portões cerrados e uma caveira que sorri

rien de rien

(cinzas por george frança, azuis por evandro bréal, amarelos por renata gomes, roxos por luiza ribas.)

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

[b. h., 1 p. m.]

eu vi algumas vezes nos cruzamentos tortos e indefinidos o grande monumento curvo do homem que não morre e rabisca guardanapos. não vi a colônia. me esperavas com a franja cobrindo o perfil e a chave em mãos. em não muito tempo tornei nosso o corredor, não importando a arrumadeira detrás de seu carrinho que não podia subir escadas. unhas me correndo sobre cobertores proibidos no quarto de ninguém. chuveiro de incêndio, janelas que não se abrem ao vôo. suores de um centro recendendo a gatos pretos. o sorvete de goiaba em pá de madeira sorvido na apreciação do mosaico. entre dois três saluts cortaste a boca que eu não desisti de morder. dá a mão, me leva por ali. ontem te esperei e os panos e as dobras te engoliram. hoje era o empório. houve o dia em que para o lado acenei o dedo cego e te prensei as costelas na minha frente, com força, querendo não desabar quatro estados de volta. as sombras entre ladeiras apertadas pelo retardo da partida. cheguei ao destino porque retornei ao começo, porque a recherche da navegação era em nova seara velha. portador de flores no cabaret do tempo, te estendi as taças diante da estação. e me estendeste nos veludos, e me desceste aos deliciosos porões do inferno onde ao som da lira transviada eras eurídice tensionando a não ser mais igual esta penélope. descerrei a pele e eras mais do que aquilo que podia envolver nesses braços xadrezes nas curvas que nos despediram para não mais cinco anos.

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por george frança

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

as voltas e o toque
[que] ela me traz
o balanço, o giro
e o rebolar de
um todo pairando
em cima,
pontiaguda.

escolho a melodia
afino a velocidade
e tenho o que
quero.

escolho
é bossa,
é samba
é bethânia
e não é gal.

trago o marvin
lá de longe e
canto beatles
relembrando.

puxo de canto
um outro,
mas ele
não
me
tem.

tento.
tento.

é rara
a nossa história.



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renata gomes

quarta-feira, 30 de setembro de 2009

França

sua face é um ritrato barroco
em que com outros pincéis
e outras tintas
transformo os semblantes
de diva pop
a rainha dos 80
a vilã decadente

não importa
a porta
o espelho das imagens
sempre se abre

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Ev. Brèal